Com informações de: Manoel Alberto Rebêlo dos Santos*
O Supremo Tribunal Federal, por ato de seu presidente, decidiu suspender decisões da Justiça Federal que concederam liminar requerida pela Confederação dos Servidores Públicos do Brasil em ação ordinária, impeditiva da publicação do valor individual da remuneração dos agentes públicos porque portadora de potencial lesivo ao direito à intimidade.
A liturgia inerente à austeridade própria do Poder Judiciário, de que resulta necessária hierarquia entre os tribunais, impõe aos presidentes de todos os tribunais do país o cumprimento da decisão também quanto aos magistrados e serventuários de seus respectivos quadros.
Todavia, outra característica essencial da judicatura, que é o permanente compromisso de cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis – tal o juramento que fazem os magistrados quando empossados no cargo -, deixa apreensivas as autoridades judiciárias.
É que a referida decisão foi tomada pelo presidente do STF durante as férias da Corte, o que cabe somente em matérias que desafiem tutela de urgência, entendendo-se por urgente a proteção a direito que, cumulativamente, se apresente fundado em relevantes motivos, ameaçado de perecimento em razão de demora na intervenção judicial e não seja portador de risco contra o interesse público.
A tutela de urgência é provisória e precária, tal como ressalva a decisão do presidente do STF – “neste tipo de processo, esta nossa Casa da Justiça não enfrenta o mérito da controvérsia, apreciando-o, se for o caso, lateral ou superficialmente”. No caso, omitiu-se de examinar, por isto mesmo, pontos importantes ao aprofundamento meritório da causa, atraentes de dúvidas e perplexidades que se podem sintetizar em seis pontos:
1º – o art. 39, § 6º, da Constituição Federal estabelece, com a redação que lhe deu a Emenda nº 19/98, que os “Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário publicarão anualmente os valores do subsídio e da remuneração dos cargos e empregos públicos”; a norma constitucional específica não manda publicar os valores percebidos, individualmente, pelos ocupantes dos cargos e empregos públicos, mas apenas o valor da remuneração correspondente aos cargos e empregos públicos, pela evidente razão de que o montante da despesa assim gerada é que interessa considerar quando se analisa o peso que a remuneração dos servidores públicos em geral tem no orçamento dos entes federativos, e que não pode ultrapassar os limites fixados pela Lei de Responsabilidade Fiscal; eventuais desvios ou abusos personalizados sujeitam-se às mais variadas instâncias de controle interno e externo, tais como tribunais de contas e ministério público; a decisão provisória do presidente do STF não faz referência ao art. 39, § 6º;
2º – a Lei de Acesso à Informação (nº 12.527/11) não ampliou o alcance do art. 39, § 6º, da Constituição (a possibilidade de fazê-lo também é tema sujeito ao crivo da Corte Constitucional); a ementa da Lei nº 12.527/11 enuncia que o seu propósito é o de regular “o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal”; nenhum desses dispositivos manda dar publicidade ao valor individualizado da remuneração dos servidores públicos; ao contrário, todos condicionam o acesso à informação à existência de determinados interesses e preservada a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, “assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, X, da Constituição); a decisão do presidente do STF considera que a publicidade individualizada da remuneração atende a interesse coletivo ou geral pelo fato de se tratar de servidores públicos, com o que inaugura discriminação de que jamais antes se cogitou, a ponto de excluir os servidores públicos do sigilo fiscal assegurado a todos os cidadãos; em tese, há urgência para evitar discriminação, não para instituí-la;
3º – o art. 216, § 2º, da vigente Constituição, mencionado na ementa da Lei nº 12.527/11, atribui “à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem”; quem mandou publicar a remuneração dos servidores públicos de “maneira individualizada” foi o Decreto nº 7.724/12 (art. 7º, § 3º, VI), que a veio regulamentar; quem alterou o tratamento dispensado à matéria pela Constituição não foi a Lei nº 12.527/11, mas, sim, o Decreto 7.724/12; suscitável, aí, outra questão constitucional relevante: a finalidade de todo decreto, que se define como ato administrativo de chefe de poder executivo, é a de dar “fiel execução” à lei que visa regulamentar (CR/88, art. 84, IV), por isto que não a pode extrapolar, instituindo direitos ou criando obrigações não previstos na lei regulamentada;
4º – a Lei nº 12.527/11 preceitua, em seu art. 31, § 2º, em harmonia com o art. 5º, X, da Constituição, que “Aquele que obtiver acesso às informações de que trata este artigo será responsabilizado por seu uso indevido”; tais informações são, diz a cabeça do mesmo art. 31, as concernentes “à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais”; será necessário, para afastar a incidência dessas normas, classificar a remuneração individual dos servidores públicos como informação pública, acessível a todos e sem direito à proteção devida à intimidade ou à vida privada; embora não o expressem, tais são os efeitos imediatos do Decreto nº 7.724/12 e da decisão do presidente do STF;
5º – a decisão suspensiva da liminar invoca, ainda, como fundamento outra decisão proferida pelo STF, em sessão administrativa de 22 de maio de 2012, já vigente a Lei nº 12.527/11, e por meio da qual a Corte deliberou, à unanimidade, “divulgar, de forma ativa e irrestrita, os subsídios dos ministros e a remuneração dos servidores do quadro de pessoal do Supremo Tribunal Federal, assim como os proventos dos ministros aposentados, dos servidores inativos e dos pensionistas”; os termos dessa diretriz administrativa do STF aludem, como se vê, a valores, cargos e situações jurídicas, não a pessoas individualizadas, e não são inequívocos, tanto que, ao neles se espelharem, as administrações de alguns tribunais (Superior Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça do Distrito Federal, por exemplo) passaram a divulgar a relação individualizada da remuneração de seus magistrados e servidores sem, porém, a identificação dos respectivos nomes, a compatibilizar a publicidade com a proteção constitucional devida à intimidade;
6º – os magistrados de carreira julgam, ao longo de décadas no exercício diuturno da jurisdição cível ou de família, litígios os mais inusitados acerca de alegados danos materiais e morais, por arguida violação à intimidade ou à imagem e seus deveres correlatos; são homens e mulheres que discutem o valor de pensão ou sobre a partilha de bens havidos de casamento ou união estável, pais e filhos que se digladiam quanto a esses mesmos bens e valores, credores e devedores que intentam demonstrar dispor ou não dispor de meios para atender a compromissos contratados, prestadores de serviços (bancos, seguradoras, planos de saúde, concessionárias de serviços públicos, entre outros) que imputam a usuários ou consumidores condições, legítimas ou não, para cumprir ou não cumprir cláusulas contratuais etc.; se uma das partes desses milhares ou milhões de conflitos do cotidiano forense for servidor público, estará em desvantagem perante a parte adversa, que já conhecerá a remuneração daquele, se removidas as garantias constitucionais e legais tal como eram entendidas até aqui, em colisão com a regra inscrita no art. 125 do Código de Processo Civil, que impõe ao juiz o dever de garantir às partes igualdade de tratamento.
Sendo o STF, como é, o Tribunal incumbido de dar a palavra final sobre o sentido dos princípios e normas constitucionais, assim será se o STF disser que é, mas conviria que o fizesse por decisão plenária, após amadurecida interlocução (como tem feito em outras matérias de extraordinária repercussão), da qual talvez venha a resultar que, por questão de isonomia – tema igualmente constitucional -, a total exposição da remuneração individual deve alcançar todos aqueles que exerçam funções essenciais para a sociedade, ainda que não sejam integrantes dos quadros públicos, como, por exemplo, os empresários, cujo valor dos rendimentos pessoais poderá ser do interesse dos empregados conhecer, à vista do princípio da preservação da empresa.
Nem é difícil imaginar que o precedente venha a inspirar ações civis públicas por meio das quais o Ministério Público ou a Defensoria Pública postule a publicidade da remuneração individual dos integrantes dessa ou daquela categoria profissional como condição para atender a tais ou quais interesses coletivos ou difusos (no mundo globalizado, tudo, ou quase tudo, pode vir a constituir direito ou interesse tutelável mediante ações coletivas). E quando o sigilo fiscal se houver tornado obsoleto, caberá aos historiadores do direito registrar que tudo começou com um ato administrativo de chefe de executivo, que decisão pessoal do presidente do STF, durante as férias da Corte, entendeu de transformar na nova fronteira da proteção ao direito à intimidade e à vida privada, na ordem constitucional brasileira.
Aguardam os juízes uma clara orientação da Suprema Corte, que sirva aos direitos e garantias fundamentais que a Constituição defere a todos. Enquanto isto, como agentes políticos e servidores públicos em sentido lato que também são, estarão expondo a quem queira saber – ainda que não se perceba a utilidade disto para a gestão do estado – o valor de suas remunerações individuais, tanto pelo valor que corresponde ao cargo, o que já se encontra nos sítios eletrônicos de todos os tribunais, quanto em relação a acréscimos ou reduções decorrentes de fatores variados, e previstos em lei, que lhes afetam a carreira em caráter pessoal.
A imprensa, assim como as outras instituições primordiais da fisionomia de uma nação, escreve papel importante na interpretação de sua Constituição. Mas, por outro lado, não lhe cabe, ainda que a pressão que possa exercer decorra das melhores intenções, a interpretação final dos princípios e das normas constitucionais, atribuição precípua do Poder Judiciário e, com maior especificidade, do Supremo Tribunal Federal. Assim, talvez não seja demais lembrar a função predominante de cada instituição. A se admitir, por questão de conveniência ou oportunidade, a moratória da Constituição, corre-se o risco de vê-la esvaziada de seu fundamental conteúdo de segurança jurídica, inclusive frente aos seus próprios e mais relevantes poderes e instituições. Por isso, na candente advertência de Hegel: “Quem exagera o argumento, prejudica a causa.” Que na situação concreta do julgamento de mérito, a causa possa, ponderadamente, superar o argumento.
* Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
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