Com informações de: Pedro Delarue e Roberto Kupski*
Ao sair das brumas autoritárias, o Brasil buscou refletir e remodelar suas instituições a partir da democratização ancorada na consagração do Sistema de Freios e Contrapesos. Vinte e três anos depois, o grande desafio é fazer valer, na prática, a independência dos três Poderes, tal como concebida, em 1748, na Teoria da Separação dos Poderes formulada por Montesquieu em “O Espírito das Leis”, cuja essência havia sido estudada anteriormente por Aristóteles.
Exemplo da fragilidade denunciada pode ser constatado a partir do episódio que envolveu a Lei Orçamentária Anual (LOA) da União para 2012, que não contemplou autorização suficiente para a concessão do reajuste do subsídio de ministros, juízes, membros do Ministério Público da União (MPU), tampouco do plano de carreira dos servidores do Judiciário e do MPU, previstos na proposta orçamentária enviada pelo Supremo Tribunal Federal ao Poder Executivo.
De acordo com nota assinada por várias associações de magistrados, “não há registros na história da República de outra ocasião em que valores destinados à recomposição dos vencimentos de magistrados tenham sido cortados da proposta orçamentária enviada pelo Judiciário e consolidada pelo Executivo”.
Sem previsão de dotação suficiente na LOA, o processo legislativo fixado regimentalmente para tramitação das propostas de reajuste dos subsídios dos ministros do STF e membros do MPU fica emperrado, em face do instituto que ficou conhecido ao longo da última década como “inadequação orçamentário-financeira”, exigida compatibilidade e apresentação de estimativa de impacto, inclusive sobre os limites fiscais, pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Impossível não reconhecer que a ousadia do Poder Executivo põe em xeque a independência dos Poderes e afronta o artigo 37, inciso X, da Constituição da República, na medida em que, devido à “inadequação orçamentário-financeira” intencionalmente “plantada” pelo Poder Executivo, as propostas não seguem o rito legislativo natural no âmbito do Congresso Nacional, tudo em nome da austeridade. Nessa hora, o Palácio do Planalto invoca a Lei de Responsabilidade Fiscal em todas as suas dimensões.
Nunca é demais relembrar que a Declaração Revolucionária Francesa de 1789 estabelece que “a sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição” (artigo 16). Teria o Brasil uma Constituição de fato ou estamos diante de uma Carta Romântica, uma Carta Lírica, que pode ser observada ou não, segundo o tom e o humor do “Chefe de Plantão”?
O lema é: para os amigos (os integrantes do primeiro e segundo escalões do governo) tudo, inclusive o excesso de parcimônia com o recebimento acima do limite constitucional, em decorrência da participação em conselhos administrativos e fiscais de empresas estatais e privadas, o que lhes garante ganhos mensais que beiram a casa dos R$ 50 mil, conforme noticiado em reportagens recentes do Jornal Correio Braziliense. Para os membros do Poder Judiciário, do MPU e servidores públicos civis federais, cujas remunerações estão defasadas há alguns anos, a Lei de Responsabilidade Fiscal. O momento não pode ser qualificado de outra forma senão de “a era das contradições republicanas”.
Enquanto magistrados e servidores civis federais fizeram uma verdadeira peregrinação pelos corredores e comissões do Congresso Nacional na luta pela inclusão de dotação orçamentária necessária à aprovação dos reajustes das referidas categorias, os primeiro e segundo escalões ministeriais encerraram o exercício de 2011 ostentando ganhos totais provenientes da administração pública muito acima do limite constitucional, sem nenhum constrangimento, sem qualquer aborrecimento ou obstáculo de ordem fiscal.
Mas o paradoxo não cessa por aí. Para recompor as perdas acumuladas do poder de compra dos subsídios dos ministros do STF é necessária a comprovação de adequação orçamentária e financeira, além de encaminhamento da estimativa de impacto da proposta em relação aos limites de pessoal; para criar três entidades fechadas de previdência complementar (Funpresp) e alterar, consideravelmente, o atual equilíbrio previdenciário dos tribunais do Judiciário e do MPU durante o longo período de transição da previdência complementar, o Palácio do Planalto ignora os pressupostos da gestão fiscal responsável. Tais pressupostos exigem a realização de levantamento técnico segregado que possibilite a elaboração de estimativa de impacto orçamentário-financeiro e, acima de tudo, sobre os limites de pessoal de cada um dos Poderes e órgãos autônomos da União, como determina a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Novamente, o lema é: para criar a Funpresp, o Palácio do Planalto dita um tom “flexível” – senão deturpado – para o processo legislativo, que ignora a inexistência confessada, pela ministra do Planejamento e da própria presidente da República, de adequação orçamentário-financeira e – o que é mais grave – a falta de estimativa do impacto da proposta sobre os limites de pessoal dos Poderes e órgãos federais com percentuais específicos. Para votar as propostas de reajuste dos ministros do STF e membros do MPU e dos respectivos servidores, que se arrastam há anos na Câmara dos Deputados, o Palácio do Planalto dita outro tom, que exige a aplicação, com toda técnica e rigor, das disposições da Lei Fiscal.
Quando se analisa a questão sob uma perspectiva mais ampla, as contradições não são menores. Para criar a Funpresp, o Palácio do Planalto oferta dotações provenientes da reserva de contingência, cujo conceito e uso há alguns anos vêm sendo deturpados, como meio de “enxugar” artificiosamente os recursos da proposta orçamentária da União. Para a aprovação dos reajustes dos subsídios dos ministros do STF, dos membros do MPU e remuneração dos respectivos servidores, o Palácio do Planalto alega novamente dificuldades fiscais.
As contradições são ainda mais flagrantes quando examinamos a série história da execução orçamentária no plano federal. Em 2000, a reserva de contingência foi da ordem de R$ 1,2 bilhão, valor correspondente a 0,82% da receita corrente líquida (RCL) federal, no valor de R$ 145,1 bilhões. Em 2011, entretanto, a previsão atualizada da reserva de contingência atingiu R$ 25,7 bilhões, valor equivalente a 4,6% da RCL que fechou o exercício em R$ 558,7 bilhões. Para 2012, o Poder Executivo propôs uma reserva de contingência da ordem de R$ 34 bilhões, enxugando, cada vez mais, o orçamento da União e inviabilizando políticas públicas importantes para a sociedade, como a que visa democratizar o acesso à Justiça.
No período de 2000 a 2011, a soma das previsões atualizadas da reserva de contingência superou a cada dos R$ 184 bilhões, valor não desprezível. No mesmo período, a RCL apresentou um crescimento de 285%, enquanto a reserva de contingência cresceu 21 vezes, ou seja, cerca de 2.041%.
Em época de tantas contradições republicanas, descortinadas durante o processo de escolha das políticas e da destinação de recursos do orçamento da União, é oportuno rememorar as lições do filósofo iluminista, no sentido de que “só o poder freia o poder”. Com a palavra, os Poderes da República.
Pedro Delarue – Presidente e Roberto Kuspki – Secretário-Geral do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado.
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