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ARTIGO» Reforma Administrativa em Marcha à Ré (2): a PEC 38/2025

"A proposta cria mecanismos de precarização do trabalho, instabilidade institucional, centralização política e redução de capacidade operacional do Estado. Trata-se de um texto orientado pelo ajuste fiscal e não por evidências técnicas ou científicas que indiquem o aperfeiçoamento dos serviços públicos."

Com informações de: Rudinei Marques – Auditor Federal de Finanças e Controle, doutor em Filosofia e presidente do Fonacate

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A Proposta de Emenda à Constituição – PEC 38/2025, somada a um projeto de lei complementar e outro de lei ordinária, tem sido apresentada como uma reforma administrativa capaz de modernizar o Estado brasileiro e combater privilégios. Entretanto, trata-se de um texto de forte viés fiscalista, sem quaisquer indicações de melhorias efetivas nos serviços públicos.  Pelo contrário, a proposta reduz as capacidades estatais, compromete o pacto federativo, fragiliza a independência dos Poderes, flexibiliza garantias constitucionais indispensáveis e abre espaço para relações precárias de trabalho, como mostramos a seguir, associando os pontos mais graves do texto aos seus efeitos projetados:

 

  1. Violação de cláusulas pétreas: ameaça à independência entre Poderes e ao pacto federativo

Um dos aspectos mais graves da PEC 38/2025 é a ingerência do Poder Executivo federal nas carreiras e estruturas administrativas dos demais Poderes, bem como dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Ao estabelecer competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de organização administrativa e de gestão de pessoas, com caráter vinculante para todos os entes federados e Poderes, a proposta fere o princípio da separação dos Poderes e compromete a forma federativa do Estado, ambos protegidos como cláusulas pétreas da Constituição.

Efeitos projetados:

  • Centralização excessiva de poder político e administrativo no Executivo federal.
  • Redução da autonomia dos Estados, DF e Municípios, dos Poderes Legislativo e Judiciário, e dos órgãos constitucionalmente independentes.
  • Uniformização forçada de carreiras, sem considerar realidades regionais, orçamentárias e funcionais.

 

  1. Engessamento constitucional dos investimentos em políticas públicas

A PEC 38/2025 introduz dispositivos que limitam a expansão de quadros, investimentos e políticas estruturantes. Trata-se de um desenho voltado exclusivamente ao ajuste fiscal permanente, impondo restrições constitucionais que reduzem as capacidades estatais.

Efeitos projetados:

  • Redução progressiva da oferta de serviços essenciais, como saúde, educação e segurança pública.
  • Ciclo de subfinanciamento estrutural, inviabilizando respostas às demandas sociais crescentes.
  • Inviabilidade para expansão de programas sociais e de atendimento direto ao cidadão.

 

  1. Burla ao instituto do concurso público e precarização do vínculo estatal

Outro ponto muito preocupante é a autorização explícita de contratação temporária para funções típicas de cargos efetivos, inclusive em áreas estratégicas e exclusivas de Estado.

Efeitos projetados:

  • Erosão do concurso público como mecanismo impessoal e meritocrático de ingresso.
  • Lotação de indivíduos sem vínculo permanente em áreas sensíveis, com acesso a informações estratégicas e prerrogativas exclusivas de carreiras de Estado.
  • Pressão adicional sobre o Regime Próprio de Previdência e sobre o Regime de Previdência Complementar.
  • Expansão do trabalho precário, terceirização disfarçada e rebaixamento salarial generalizado.
  • Substituição de carreiras profissionais por mão de obra volátil, comprometendo a continuidade administrativa — um dos pilares do serviço público.

 

  1. Banalização da Constituição Federal: risco de transformar a Carta Magna em manual gerencial

Com mais de 40 páginas de texto, a PEC 38/2025 promove verdadeira hipertrofia constitucional. Ao inserir normas operacionais e elementos de gestão no texto constitucional, a proposta converte a Constituição em um manual administrativo.

Efeitos projetados:

  • Esvaziamento do caráter republicano e principiológico da Constituição Federal.
  • Engessamento da gestão, já que detalhes operacionais se tornam rígidos e difíceis de modificar.
  • Pressão permanente por novas mudanças constitucionais a cada imperativo gerencial.

 

  1. Manutenção dos verdadeiros privilégios: incoerência do discurso moralista

Apesar da retórica de combate a privilégios, a PEC não toca nos autênticos mecanismos de concentração de renda e captura do orçamento público, o que mina a credibilidade do Legislativo federal, ou melhor, dos autores da proposta. Com efeito, em que pese o discurso moralizante dos defensores da PEC 38/2025, o texto preserva:

  • Privilégios bilionários de rentistas e instituições financeiras.
  • Benefícios tributários bilionários para grandes grupos econômicos.
  • Isenções bilionárias de tributação sobre lucros, dividendos e grandes fortunas.

 

  1. Caráter etarista e discriminatório: bônus apenas para servidores ativos

A criação de bônus de desempenho exclusivamente para servidores ativos, excluindo aposentados e pensionistas, instaura a competição no âmbito do serviço público, fomenta o conflito geracional e rompe com regras de isonomia.

Efeitos projetados:

  • Discriminação de aposentados e pensionistas, apesar de suas contribuições previdenciárias integrais, mesmo depois do recebimento dos proventos de aposentadoria e pensão (em face da EC 41/2003).
  • Incentivo a um ambiente laboral competitivo e individualista, prejudicando a cooperação necessária à consecução de políticas públicas.
  • Aumento da judicialização por quebra de paridade.

 

  1. Sobrecarga dos órgãos de controle: risco ao combate à corrupção

A PEC transfere aos órgãos de controle funções administrativas e gerenciais que fogem de sua finalidade constitucional. Essa distorção estrutural reduz sua capacidade de fiscalização do Estado.

Efeitos projetados:

  • Redução do tempo, recursos e quadros disponíveis para aferição da qualidade do gasto público.
  • Enfraquecimento dos sistemas de auditoria governamental, integridade, transparência e correição.
  • Criação de dificuldades adicionais no enfrentamento à corrupção.

 

  1. Restrição do teletrabalho: retrocesso administrativo

A limitação do teletrabalho a 20% da carga horária semanal desconsidera evidências de eficiência, economia e satisfação laboral observadas no setor público e privado.

Efeitos projetados:

  • Aumento de despesas correntes (energia, espaço físico, logística).
  • Redução de produtividade em áreas que já demonstraram ganhos com o teletrabalho.
  • Retrocessos na implementação de modelos inovadores de gestão.

 

Em suma, trata-se de uma reforma que enfraquece e não fortalece o Estado; uma reforma que não melhora os serviços públicos, não moderniza o Estado, não corrige distorções estruturais, não combate os verdadeiros privilégios e não fortalece a administração pública brasileira.

Ao contrário, a proposta cria mecanismos de precarização do trabalho, instabilidade institucional, centralização política e redução de capacidade operacional do Estado. Trata-se de um texto orientado pelo ajuste fiscal e não por evidências técnicas ou científicas que indiquem o aperfeiçoamento dos serviços públicos.

É imprescindível, portanto, que o debate se faça com base em dados, estudos técnicos e acadêmicos, e na defesa intransigente dos princípios constitucionais. A sociedade brasileira necessita de um Estado profissional, estável, resiliente e capaz de entregar políticas públicas universais — não de um Estado precarizado e subordinado a interesses conjunturais.

 

Clique aqui e confira o artigo publicado no site do ICL.

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