"Uma análise mais detida mostra que o projeto entrega pouco do que promete, podendo inclusive elevar a insegurança jurídica dos concursos."
Com informações de: *Rudinei Marques e **Marcelo Ferreti
O projeto da Lei Geral de Concursos, iniciado no Senado há 20 anos (PL 252/2003) e aprovado pela Câmara dos Deputados em agosto de 2022, depois de ampla modificação, aguarda votação terminativa pelos senadores (PL 2258/2022). Não pode mais sofrer alterações, exceto adequações redacionais, o que impõe a discussão sobre a pertinência de sua aprovação ou rejeição na íntegra. E o momento é oportuno para este debate, haja vista a necessidade de ampla reposição de quadros na União, assim como a disposição do Ministério da Gestão de promover concursos públicos unificados.
O PL 2258 promete parametrizar a realização de concursos pela União e demais entes federados, evitando a frequente judicialização dos certames. Quer também avaliar competências e habilidades, facultando o ingresso de candidatos mais vocacionados à função pública, e não apenas os capazes de resolver questões objetivas de múltipla escolha. Pretende, ainda, democratizar o acesso com o uso de plataformas eletrônicas, estimular ações afirmativas na destinação das vagas e aprimorar a formação dos aprovados. No entanto, uma análise mais detida mostra que o projeto entrega pouco do que promete, podendo inclusive elevar a insegurança jurídica dos concursos.
Dentre as novidades apresentadas pelo PL 2.258/22, uma das que mais merecem atenção se vincula à consideração do que ali se denomina de “aspectos comportamentais”. Embora a introdução da consideração desses aspectos seja uma forma de mitigar a supervalorização da mera memorização de conteúdos nos certames, a qual provoca graves distorções, na medida em que privilegia os ditos “concurseiros”, a ação se dá de forma muito pouco clara, o que pode dar margem para arbítrios.
Tal expressão aparece pela primeira vez no § 1º do art. 2º, cuja redação reza que a seleção de candidatos deve-se realizar mediante avaliação de conhecimentos, habilidades e “competências”, isto é, “aspectos comportamentais vinculados às atribuições”. O texto do artigo em questão ainda acrescenta que tais aspectos serão considerados “nos casos em que couber”.
A expressão se repete nos artigos 6º e 7º. O primeiro estabelece que compete à comissão organizadora “definir, com base nas atribuições dos postos, o conteúdo programático, as atividades práticas e os aspectos comportamentais a serem avaliados”. Já o último reza que o edital do concurso deverá prever “os tipos de prova e os critérios de avaliação, com especificação do conteúdo programático, atividades práticas e, quando for o caso, aspectos comportamentais a serem avaliados”. Esses aspectos são detalhados apenas no inciso III do § 2º do art. 9º, no qual se esclarece que eles compreendem “avaliação psicológica, exame de higidez mental ou teste psicotécnico, conduzido por profissional habilitado nos termos da regulamentação específica”.
A vagueza dessas formulações é patente, e sua razão, enigmática. Desse modo, caberia perguntarmos: por meio de que critérios seria decidido considerar ou não a avaliação de tais aspectos e o que pautaria a decisão por um instrumento e não outro? Cada edital e cada comissão organizadora poderia determinar não apenas se os “aspectos comportamentais” fariam parte da avaliação (“nos casos em que couber”) como ainda quais aspectos deveriam ser considerados. Se levarmos em conta ainda o que afirma o § 2º do art. 12, o qual estabelece que “os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem optar por editar normas próprias”, podemos ter a medida do grau de aleatoriedade das determinações a respeito dos ditos “aspectos comportamentais”.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP), que regulamenta a prática da avaliação psicológica no país, apresenta diretrizes claras para a realização desta em variados âmbitos, dentre os quais concursos públicos, em que “os requisitos psicológicos a serem avaliados precisam ser definidos previamente, por meio de um estudo científico do cargo, também chamado de perfil profissiográfico ou profissiografia”. O PL não apenas não especifica os aspectos inquiridos acima como também não faz referência ao CFP e nem mesmo à psicologia, que estuda o comportamento. A consulta aos materiais produzidos nesses âmbitos e a interlocução com seus atores poderia evitar o emprego de expressões duvidosas, como a lombrosiana “higidez mental”, e uma formulação absolutamente genérica como “profissional habilitado nos termos da regulamentação específica”.
Ao não apresentar qualquer esforço de precisão ou especificação no que respeita aos aspectos destacados acima, o PL deixa de garantir a intenção de se pautar por critérios objetivos de avaliação e, por conseguinte, científicos. No limite, nada impede que sejam empregadas nas avaliações práticas adivinhatórias ou pseudocientíficas, como grafologia e a constelação familiar, as quais são largamente utilizadas em empresas e dispõem de cursos de “habilitação”. Fora das raias do conhecimento cuja cientificidade é comprovada, critérios morais ou de gosto pessoal se impõem na análise do comportamento facilmente. Não à toa, antes de começar a ser conceituado cientificamente, o termo “comportamento” se localizava justamente no campo da moral.
Daí por que os Conselhos de Psicologia se mantêm sempre atentos aos perigos que cercam o enfoque de “aspectos comportamentais”, promovendo atualizações constantes nas normas e leis. Por exemplo, a Resolução 7/2009 do Conselho Federal de Psicologia, a qual institui normas e procedimentos para a realização de avaliação psicológica no trânsito, define muito bem o que significam comportamentos adequados nesse âmbito – “tempo de reação”, “coordenação viso e áudio-motora” –, como eles são mensurados e como são avaliados. Assim, caso aprovados os termos pouco objetivos do PL 2258, os processos seletivos estariam passíveis de arbítrios, carecendo da lisura e da transparência necessárias na condução de qualquer certame.
Para além dessa falha insanável, em função da impossibilidade de alteração, há outras não menos relevantes. A democratização do acesso pelo uso da internet fica comprometida pelo alto percentual de exclusão digital no país. O estímulo a ações afirmativas, para ser efetivo, já deveria especificar cotas de vagas na própria lei, e não deixar isso a cargo da comissão organizadora de cada certame. O aprimoramento da formação de candidatos, na medida em que confere atribuições próprias de servidores efetivos a meros postulantes – tanto é que lhes impede, no § 3º do art. 11, “o exercício de competências decisórias que possam impor dever ou condicionar direito” –, é uma afronta às leis que fixam atribuições e prerrogativas dos cargos públicos. Por fim, a razão de ser do projeto, que é a parametrização de concursos em todo o país, é estilhaçada pelo já referido § 2º do art. 12, que confere aos estados e municípios a possibilidade de editar normas próprias.
Por tudo isso, melhor seria que o Ministério da Gestão mobilizasse esforços na elaboração de um novo projeto de lei, que bem poderia tramitar em regime de urgência, de forma a garantir que os novos concursos seguirão regras homogêneas em todo o país, com as melhorias que o atual PL promete, mas não entrega, e outras que possam verdadeiramente aperfeiçoar o serviço público brasileiro.
* Rudinei Marques – Doutor em Filosofia. Presidente do Fórum das Carreiras de Estado (Fonacate)
** Marcelo Ferreti – Doutor em Filosofia. Professor de Psicologia e Ética da FGV/EAESP
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